Ao assistir a entrevista de Bauman no programa “Fronteiras do Pensamento” chego à conclusão que a discussão proposta por ele é inquietante.
Como nos relacionar com os outros em uma sociedade individualizada, tão fluida,
tão marcada pelo frágil, pelo rápido, delivery, etc. Tratar de fluidez na
modernidade é algo que parece simples, mas pode ser também bastante complexo.
Falar simplesmente que tudo está fluido, até as relações, seria algo repetitivo
e devolver um texto clichê, praticamente parafraseando o autor.
Entendo que para aprofundar uma discussão destas, nada melhor
que ir um pouco mais ao âmago da questão das relações, do tempo-espaço, da
instantaneidade da vida, da sedução do efêmero, nos reportando a historicidade
que culminou neste período denominado de modernidade.
Historicamente, a relação de espaço-tempo foi uma das que
mais se transformou no decorrer dos milênios. Primeiramente, a própria contagem
do tempo era mais absoluta e nada fragmenta. Dia e noite - era como se
estruturava o tempo, e o sol e a lua eram os seus marcadores. O dia para a
atividade de subsistência, a noite para o repouso, em meio a isso uma vida de
relações sócio-afetivas imbricadas, pois a sociedade se constituía
comunitariamente, até para poder sobreviver.
Contudo, o homem tinha o desejo de dominar o tempo, tanto que
o relógio é uma das mais antigas invenções humanas. O primeiro que se tem
notícia foi o relógio de sol (media o tempo através da sombra projetada pelo
sol em um pedaço de madeira), em geral dividia o dia em partes, de acordo com a
estação do ano que modifica a incidência do sol sobre a terra e, assim, o
posicionamento da sombra.
Depois aparecem os relógios mais precisos de água e de areia
(denominados ampulhetas), que conseguiu finalmente dividir o tempo em horas e
fração de horas. Até chegar ao relógio de pulso (inventado, por sinal, por
Santos Dummont), que passou a acompanhar o homem, aprisionando-o na frenética
frequência do seu implacável tic-tac (no caso analógico), que precisa correr
contra o tempo para conseguir um pouco deste mesmo tempo.
O espaço era outra realidade livre, não referenciado em
delimitações. Este não era delimitado, porque a ideia de limite não era configurada.
Realmente, a visão que se tinha de espaço era de imensidão, amplitude,
desconhecido. A vida mais primitiva se constituía em uma liberdade de tempo e
espaço. Com o passar dos milênios, foi se desenvolvendo o sentido de posse e as
divisões dos espaços inclusive em propriedades privadas. Agora, até os espaços
mais longínquos das galáxias são “invadidos”, mesmo que a distância, pela
presença de satélites ou observação através de gigantescos telescópios, que ao
perscrutar estes espaços livres já procurar de alguma forma delimitá-los.
Enfim, o homem que queria dominar o tempo, em verdade acabou
sendo dominado por este. O homem que queria delimitar o espaço tornou-se preso
às delimitações que ele mesmo criou.
E é neste frenesi de tempo e limitação de espaço que chega a
modernidade. Nesta tudo realmente se tornou fluido, porque não há mais tempo
para compreender e se relacionar com o outro. Nela também não há mais a
liberdade do espaço, tudo está de alguma forma demarcado, nos limitamos ao
nosso pequeno mundo.
Somos seduzidos pelo efêmero, pelo volátil, porque não há
tempo a perder para conseguir degustar aquilo que, a custa do nosso precioso
tempo, se conseguiu ter. É um verdadeiro contrassenso. Esse dissabor com
relação ao que temos e o que somos se tornou tão marcante, que mesmo que a
expectativa de vida tenha aumentado tanto nos últimos anos, sentimos a vida
passar em uma velocidade incomensurável.
Se delimitamos de tal forma nosso espaço, se controlamos ao
extremo o nosso tempo, como conseguir constituir relações sociais duradouras? A
fluidez realmente é a resposta. Não há mais tempo de prosear na varanda, não há
mesmo espaço para varandas nos nossos 'apertamentos'. A modernidade se constitui
a partir da fluidez, do inconstante, do efêmero. Mas, até quando conseguiremos
viver assim? Ontologicamente temos os resquícios dos nossos antepassados, que
viveram em uma familiar relação social, e estas marcas de relações com certeza
gritam na nossa constituição. Será que em meio a está vida instantânea
conseguiremos ouvir este clamor, e reconfigurar a nossa relação com o tempo e o
espaço e a forma de interação com os outros? Uma questão para nos inquietar. Cássia.
Na busca pela liberdade na sua
relação com o têmporo-espacial,
o homem foi aprisionado pelo
tempo e delimitado pelo espaço.
Cássia.