Cara amiga,
Agradeço a confiança em partilhar
comigo os seus sentimentos a respeito da sua escolha profissional, espero que
possa colaborar não dizendo a você o que fazer, mas percorrendo com você um
caminho que sirva de pontos de reflexão, para que você possa se perceber no seu
processo e ter mais convicção na hora de tomar as suas decisões.
Desta forma, repassando todo o
processo de formação profissional, pelo qual deve trilhar um psicólogo em
formação, e pelo fato de que esse processo eu já pude vivenciar, é que
considero ser possível chegar a questionamentos e também a algumas reflexões, que
poderão colaborar na sua formação e no seu futuro exercício profissional. Isso,
especialmente, depois de ter sido tocada pela possibilidade de deparar-me com
os meus próprios conflitos que muitas matérias demandam, ou mesmo com as
perspectivas mobilizadoras de alguns autores, como Calligaris, Freud e Lacan,
que precisam ser compreendidas para serem questionadas ou assimiladas.
Neste sentido, posso começar a
dissertar sobre este aspecto – como um curso de psicologia mobiliza o sujeito
que está em formação. A cada momento é possível deparar-se com diversos
conteúdos, principalmente nas matérias que tratam das abordagens, onde irá
confrontar-se com as suas “neuras”, já que somos neuróticos (numa perspectiva
psicanalítica) ou operamos na “normose”, se preferir. É difícil não ver
estampado no espelho da nossa consciência tantas características pessoais,
ainda que falando dos temas e citando exemplos de maneira generalista.
Nas matérias que fazem técnicas
grupais esse aspecto é interessante, já que nos momentos de partilha muita
coisa começa a emergir, aflorando às vezes até a nossa sensibilidade (na minha
turma tivemos ótimas experiências neste sentido). Em algumas matérias essa
confrontação é tão forte, que é preciso parar um momento para “discutir a
relação” entre o grupo, o que mobiliza muito, mas também enriquece por demais a
formação e o caráter do formando.
Quando paro para refletir sobre
estes aspectos, chego a uma série de questionamentos. Se na formação já há
tanta mobilização, como será quando deparar-se com os conflitos dos sujeitos
com os quais irá atuar? Isso é algo que te aconselho a elaborar bem. Pensar que
os sujeitos com os quais irá trabalhar vão depositar uma esperança de conseguir
compreender os seus conflitos, elaborar as suas angústias, descobrir sua
vocação etc. Mesmo que isso seja algo co-construído no processo
(psicólogo/sujeito), ainda assim temos uma responsabilidade e é na formação que
a consciência disto deve ser desenvolvida, e para isso deve ser despertada a
sua atenção.
A partir destes aspectos que falei
é possível faze um “link” com outro fator essencial na formação do psicólogo, o
trabalho pessoal. Durante a minha formação fazia análise, para me situar em
todo esse processo e favorecer a minha “estruturação” para uma futura
atuação em saúde mental. Assim, desejo deixar-lhe ciente que é fundamental uma
psicoterapia (na abordagem que mais se sentir estimulada). Isso é essencial
para atuar na clínica, mas não somente nesta, pois em psicologia nós nos
defrontamos com os questionamentos e conflitos do sujeito, independente da área
de atuação escolhida. Nas organizações, nas escolas, nos hospitais, onde for,
se lá está o sujeito, também estará com ele todos as suas angústias,
frustrações, desejos, e nada como um profissional de psicologia para escutá-lo
e acolhe-lo
E para desenvolver todas estas
habilidades e competências implicadas na escuta clínica, no olhar diferenciado,
e também obter um domínio técnico e um conhecimento teórico que possam
fundamentar a prática, digo para você que é imprescindível o período da
formação acadêmica. A experiência prática vai dar a consistência a essa
atuação, mas é a teoria que a norteia. Por isso o outro ponto de reflexão que
destaco é o compromisso com a formação. Não deixe que esse período se torne
apenas um momento cansativo que deve logo passar. Aproveite cada matéria,
participe das discussões, procure aprofundar as temáticas abordadas. Mesmo
porque, conhecimento nunca é demais e sempre é uma forma de enriquecimento
intelectual. Problematize a sua formação e não passe todo o período acadêmico,
que é tão enriquecedor, “empurrando com a barriga” para conseguir um canudo e
dar adeus aos estudos. Em especial na psicologia, que quando termina a academia
a formação está apenas começando, e enquanto tiver vida a aprendizagem estará
presente.
Também é indispensável o gosto
pela leitura, especialmente dos principais autores da psicologia e aqueles mais
direcionados a uma abordagem que mais venha a despertar o seu interesse e
realmente fundamentar a sua atuação. Ressalto que são leituras que implicam em
um gozo particular, pois tem muita coisa interessante e instigante, mas também
um sofrimento, por ser contraditório a algumas convenções que já temos ou pela
dificuldade de compreensão. Mas vale a pena o esforço, pois é muito
enriquecedor.
Mas para que você possa se
disponibilizar tanto em um processo de formação é preciso que saiba o que quer
e goste daquilo que escolheu. Por isso ressalto a importância de você pensar
bem na sua escolha profissional. Quais os fatores de motivação? Quais os
desejos e o que você quer alcançar? Acredito que você deve ponderar bastante
nestes aspectos, especialmente sobre a questão da vocação para uma atuação que
predispõe uma implicação subjetiva tão profunda. Isso em um período de escolha
em que tantos fatores se sobrepõem, como desejo de lucratividade, de status
profissional ou mesmo pressão social por um diploma. Lembre-se sempre que esta
escolha é sua, pois na atuação será você e o sujeito, e se você não se implica
na sua escolha e na sua formação, será uma tarefa mais árdua e difícil se
implicar com a prática. É preciso que esteja atenta a todos estes aspectos, e
que sempre visualize a prática durante a sua formação.
Também considero importante que
você tenha critérios básicos, que norteiem a sua postura após a sua escolha.
Neste sentido acredito que alguns aspectos serão fundamentais para direcionar
melhor, tanto o período de formação como a prática, como o compromisso com a
ética, que para mim é um fator preponderante, que deve estar presente desde o
início do seu processo de formação, fazendo refletir sobre a futura postura
profissional. Segundo a questão de uma alterização do olhar. Uma supervisão é
sempre importante, principalmente se encontrar alguém que possa dar essa visão
sobre a futura área de atuação que deseja e para a escolha da abordagem que
você mais vai se identificar. Ressalto que para mim, mais uma vez independente
da área de atuação, uma abordagem teórica irá enriquecer muito a forma de
visualizar os fenômenos com os quais irá deparar-se.
Por fim, para não me alongar
por demais, acredito que o mais importante é você se implicar no seu processo
desde o início da formação e consolidar isso na atuação. Se perceba como
sujeito nesse processo, refletindo sobre os seus conflitos, especialmente
aqueles que mais afloram, ponderando as suas dúvidas, trabalhando os seus
sintomas, pois isso todos temos. Busque aprofundamento através de muita leitura
e pesquisa, já que só o conhecimento dado em sala não favorece um melhor
entendimento das demandas com as quais irá confrontar-se, tanto na formação
quanto na atuação. Considere os seus desejos e o que espera da formação e da
profissão, para não se decepcionar no primeiro obstáculo, pois quando se sabe o
que se quer é muito mais fácil lutar e vencer as barreiras para alcançar os
objetivos almejados.
Colocando todos estes pontos
não pense que tenho como pretensão desestimula-la, pelo contrário, apenas
desejo que você atentando para estes aspectos, possa despertar para uma
conscientização e uma melhor postura acadêmica e profissional. Tudo que
coloquei são pontos que trabalhados só servem para enriquecer a formação do
futuro profissional de psicologia, para o qual a prática vai muito mais além de
um simples conhecimento teórico ou técnico, perpassa por toda a sua
subjetividade.
Vale ressaltar por que decidi
escrever uma carta denominada para este “outro lado de mim”, pelo fato de que
aprendi em psicanálise que aquilo que mais nos mobiliza é porque tem conteúdos
próprios, muitos deles inconscientes, recalcados de tal forma que por vezes nem
sequer admitimos que eles existam, outras vezes há características tão
estampadas que inegavelmente dizemos venha, isso é meu! Mas sejam implícitos ou
explícitos eles podem mobilizar (e já há até um trocadilho para expressar isso
– “bateu, mexeu, leva pra casa que é seu”) e tornarem-se presentes no discurso.
Então é hora de deixar a ficha cair e elaborar, ciente que tem coelho na
cartola! Por isso escrevi assim com ares de auto-reflexão, pois estes pontos
são alguns dos quais considero fundamental numa formação e que aconselharia a
alguém, e assim com certeza preciso eu mesma estar em dias com eles. Porém, refletindo
sobre todos estes aspectos e percebendo como me posiciono em relação a eles e
como tenho lutado para melhorar em muitos, é que dá pra parar e pensar, que
apesar das dificuldades, é possível exclamar - vamos lá seguir em frente, pois está
valendo a pena!
Com carinho, Cássia.
Quando se sabe o que se quer
é muito mais fácil lutar e vencer as barreiras,
para alcançar os objetivos almejados. Cássia.
Carta feita ao final da minha formação em psicologia.