segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Carta para o outro lado de mim

Cara amiga,

Agradeço a confiança em partilhar comigo os seus sentimentos a respeito da sua escolha profissional, espero que possa colaborar não dizendo a você o que fazer, mas percorrendo com você um caminho que sirva de pontos de reflexão, para que você possa se perceber no seu processo e ter mais convicção na hora de tomar as suas decisões.

Desta forma, repassando todo o processo de formação profissional, pelo qual deve trilhar um psicólogo em formação, e pelo fato de que esse processo eu já pude vivenciar, é que considero ser possível chegar a questionamentos e também a algumas reflexões, que poderão colaborar na sua formação e no seu futuro exercício profissional. Isso, especialmente, depois de ter sido tocada pela possibilidade de deparar-me com os meus próprios conflitos que muitas matérias demandam, ou mesmo com as perspectivas mobilizadoras de alguns autores, como Calligaris, Freud e Lacan, que precisam ser compreendidas para serem questionadas ou assimiladas.

Neste sentido, posso começar a dissertar sobre este aspecto – como um curso de psicologia mobiliza o sujeito que está em formação. A cada momento é possível deparar-se com diversos conteúdos, principalmente nas matérias que tratam das abordagens, onde irá confrontar-se com as suas “neuras”, já que somos neuróticos (numa perspectiva psicanalítica) ou operamos na “normose”, se preferir. É difícil não ver estampado no espelho da nossa consciência tantas características pessoais, ainda que falando dos temas e citando exemplos de maneira generalista.

Nas matérias que fazem técnicas grupais esse aspecto é interessante, já que nos momentos de partilha muita coisa começa a emergir, aflorando às vezes até a nossa sensibilidade (na minha turma tivemos ótimas experiências neste sentido). Em algumas matérias essa confrontação é tão forte, que é preciso parar um momento para “discutir a relação” entre o grupo, o que mobiliza muito, mas também enriquece por demais a formação e o caráter do formando.

Quando paro para refletir sobre estes aspectos, chego a uma série de questionamentos. Se na formação já há tanta mobilização, como será quando deparar-se com os conflitos dos sujeitos com os quais irá atuar? Isso é algo que te aconselho a elaborar bem. Pensar que os sujeitos com os quais irá trabalhar vão depositar uma esperança de conseguir compreender os seus conflitos, elaborar as suas angústias, descobrir sua vocação etc. Mesmo que isso seja algo co-construído no processo (psicólogo/sujeito), ainda assim temos uma responsabilidade e é na formação que a consciência disto deve ser desenvolvida, e para isso deve ser despertada a sua atenção.

A partir destes aspectos que falei é possível faze um “link” com outro fator essencial na formação do psicólogo, o trabalho pessoal. Durante a minha formação fazia análise, para me situar em todo esse processo e favorecer a minha “estruturação” para uma futura atuação em saúde mental. Assim, desejo deixar-lhe ciente que é fundamental uma psicoterapia (na abordagem que mais se sentir estimulada). Isso é essencial para atuar na clínica, mas não somente nesta, pois em psicologia nós nos defrontamos com os questionamentos e conflitos do sujeito, independente da área de atuação escolhida. Nas organizações, nas escolas, nos hospitais, onde for, se lá está o sujeito, também estará com ele todos as suas angústias, frustrações, desejos, e nada como um profissional de psicologia para escutá-lo e acolhe-lo

E para desenvolver todas estas habilidades e competências implicadas na escuta clínica, no olhar diferenciado, e também obter um domínio técnico e um conhecimento teórico que possam fundamentar a prática, digo para você que é imprescindível o período da formação acadêmica. A experiência prática vai dar a consistência a essa atuação, mas é a teoria que a norteia. Por isso o outro ponto de reflexão que destaco é o compromisso com a formação. Não deixe que esse período se torne apenas um momento cansativo que deve logo passar. Aproveite cada matéria, participe das discussões, procure aprofundar as temáticas abordadas. Mesmo porque, conhecimento nunca é demais e sempre é uma forma de enriquecimento intelectual. Problematize a sua formação e não passe todo o período acadêmico, que é tão enriquecedor, “empurrando com a barriga” para conseguir um canudo e dar adeus aos estudos. Em especial na psicologia, que quando termina a academia a formação está apenas começando, e enquanto tiver vida a aprendizagem estará presente.

Também é indispensável o gosto pela leitura, especialmente dos principais autores da psicologia e aqueles mais direcionados a uma abordagem que mais venha a despertar o seu interesse e realmente fundamentar a sua atuação. Ressalto que são leituras que implicam em um gozo particular, pois tem muita coisa interessante e instigante, mas também um sofrimento, por ser contraditório a algumas convenções que já temos ou pela dificuldade de compreensão. Mas vale a pena o esforço, pois é muito enriquecedor.

Mas para que você possa se disponibilizar tanto em um processo de formação é preciso que saiba o que quer e goste daquilo que escolheu. Por isso ressalto a importância de você pensar bem na sua escolha profissional. Quais os fatores de motivação? Quais os desejos e o que você quer alcançar? Acredito que você deve ponderar bastante nestes aspectos, especialmente sobre a questão da vocação para uma atuação que predispõe uma implicação subjetiva tão profunda. Isso em um período de escolha em que tantos fatores se sobrepõem, como desejo de lucratividade, de status profissional ou mesmo pressão social por um diploma. Lembre-se sempre que esta escolha é sua, pois na atuação será você e o sujeito, e se você não se implica na sua escolha e na sua formação, será uma tarefa mais árdua e difícil se implicar com a prática. É preciso que esteja atenta a todos estes aspectos, e que sempre visualize a prática durante a sua formação.

Também considero importante que você tenha critérios básicos, que norteiem a sua postura após a sua escolha. Neste sentido acredito que alguns aspectos serão fundamentais para direcionar melhor, tanto o período de formação como a prática, como o compromisso com a ética, que para mim é um fator preponderante, que deve estar presente desde o início do seu processo de formação, fazendo refletir sobre a futura postura profissional. Segundo a questão de uma alterização do olhar. Uma supervisão é sempre importante, principalmente se encontrar alguém que possa dar essa visão sobre a futura área de atuação que deseja e para a escolha da abordagem que você mais vai se identificar. Ressalto que para mim, mais uma vez independente da área de atuação, uma abordagem teórica irá enriquecer muito a forma de visualizar os fenômenos com os quais irá deparar-se.
 
Por fim, para não me alongar por demais, acredito que o mais importante é você se implicar no seu processo desde o início da formação e consolidar isso na atuação. Se perceba como sujeito nesse processo, refletindo sobre os seus conflitos, especialmente aqueles que mais afloram, ponderando as suas dúvidas, trabalhando os seus sintomas, pois isso todos temos. Busque aprofundamento através de muita leitura e pesquisa, já que só o conhecimento dado em sala não favorece um melhor entendimento das demandas com as quais irá confrontar-se, tanto na formação quanto na atuação. Considere os seus desejos e o que espera da formação e da profissão, para não se decepcionar no primeiro obstáculo, pois quando se sabe o que se quer é muito mais fácil lutar e vencer as barreiras para alcançar os objetivos almejados.

Colocando todos estes pontos não pense que tenho como pretensão desestimula-la, pelo contrário, apenas desejo que você atentando para estes aspectos, possa despertar para uma conscientização e uma melhor postura acadêmica e profissional. Tudo que coloquei são pontos que trabalhados só servem para enriquecer a formação do futuro profissional de psicologia, para o qual a prática vai muito mais além de um simples conhecimento teórico ou técnico, perpassa por toda a sua subjetividade.

Vale ressaltar por que decidi escrever uma carta denominada para este “outro lado de mim”, pelo fato de que aprendi em psicanálise que aquilo que mais nos mobiliza é porque tem conteúdos próprios, muitos deles inconscientes, recalcados de tal forma que por vezes nem sequer admitimos que eles existam, outras vezes há características tão estampadas que inegavelmente dizemos venha, isso é meu! Mas sejam implícitos ou explícitos eles podem mobilizar (e já há até um trocadilho para expressar isso – “bateu, mexeu, leva pra casa que é seu”) e tornarem-se presentes no discurso. Então é hora de deixar a ficha cair e elaborar, ciente que tem coelho na cartola! Por isso escrevi assim com ares de auto-reflexão, pois estes pontos são alguns dos quais considero fundamental numa formação e que aconselharia a alguém, e assim com certeza preciso eu mesma estar em dias com eles. Porém, refletindo sobre todos estes aspectos e percebendo como me posiciono em relação a eles e como tenho lutado para melhorar em muitos, é que dá pra parar e pensar, que apesar das dificuldades, é possível exclamar - vamos lá seguir em frente, pois está valendo a pena!

Com carinho, Cássia.


Quando se sabe o que se quer
é muito mais fácil lutar e vencer as barreiras,
para alcançar os objetivos almejados. Cássia.


Carta feita ao final da minha formação em psicologia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Faça seu comentário.